Cinema - "O palhaço" - Selton Mello


Segundo longa metragem de Selton Mello, "O palhaço" é um belo exemplo da continuidade da alta qualidade de produção que o cinema brasileiro vem desenvolvendo nos últimos dez anos. Selton é um dos melhores atores de sua geração, com mais de 30 anos de carreira e mostra parte desse aprendizado na direção e na coautoria do roteiro, também assinado por Marcelo Vindicatto.
Selton investe em uma proposta completamente distinta do seu primeiro filme como diretor; "Feliz natal", onde a carga dramática não oferece espaço ao humor e a cartilha realista de John Cassavettes é seguida a risca. "O palhaço" é um filme para rir, chorar, sair do cinema com a alma renovada e com a certeza de que o caminho a seguir por Selton ainda nos brindará com boas surpresas.
A escolha certeira da forma, elenco e na condução do roteiro é sentida logo nos primeiros planos do filme. Selton fez uma grande homenagem ao circo e também a aqueles que - fora dele - nos fizeram rir e esquecer um pouco da realidade lá fora: Ferrugem, Zé Bonitinho, Moacir Franco - entre outros - são alguns dos personagens que desfilam ao longo da película. A cena deste último, interpretando o "Delegado Justo" é uma das que vão se eternizar no cinema brasileiro.
O enredo é simples; uma trupe de circo viaja pelo interior do país; em cada cidade, um acontecimento, seja cômico ou não, que desemboca nas dúvidas e inquietações dos artistas e suas opções existenciais. Uma delas é fio condutor da história; o palhaço, personagem de Selton; filho do dono do Circo (interpretado por Paulo José), ele não sabe se essa é realmente a sua vocação, ou uma velada imposição do pai. Tudo se resolve no final.
Destaque para a trilha sonora de Plínio Profeta, inspirada em instrumentos e sonoridades da música balcânica e do Leste europeu.

Literatura - "Tanto faz" e "Abacaxi"- Reinaldo Moraes


No conservador Rio de Janeiro dos anos 50, a imprensa gostava de brincar sobre as vissicitudes do "poetinha"Vinícius de Moraes, cantarolando uma versão tolinha sobre a melodia de "Se essa rua fosse minha". Era mais ou menos assim:" se eu tivesse, se eu tivesse/muitos vícios/e esses vícios fossem todos imorais/eu me chamaria, eu me chamaria Vinicius/me chamaria Vinicius de Moraes." Corte para os libertinos cocainômanos anos 80. Ninguém cantaria uma aberração dessas - tempos modernos. Mas se houvesse alguma corrente ultra-moralista dessa época, o personagem acima manteria o sobrenome, a única troca ocorreria no nome de Vinicius por Reinaldo Moraes.
Dificíl medir qual dos dois é mais "romântico" - cada um ao seu modo.
A Companhia das letras relançou em formato pocket , os dois romances publicados pelo autor paulista nos anos 80; "Tanto faz" e "Abacaxi", respectivamente de 1981 e 1985. O narrador das novelas é Ricardo de Mello - professor extenuado de toda a burocracia e vaidade do mundilho acadêmico de São Paulo que recebe uma bolsa de um ano em Paris; na cidade-luz protagoniza uma trajetória errática na tentativa de escrever seu primeiro livro, entre porres em cafés no Quartier Latin, noites desmemoriadas ao lado de fêmeas das mais variadas ideologias & todas essas ressacas maravilhosas acompanhadas de monólogos internos diante dos espelhos de vagões do metrô. A narrativa de Reinaldo Moraes é muy muy peculiar - vale lembrar que em 1981, as sequelas "político-emocionais" dessa geração - criada numa Ditadura militar - apresentavam os primeiros sintomas.
Trecho escolhido: "Volto pra mesa e mato num gole o que resta de vodka no cálice. Justo nesse instante, quando o álcool faz sua agradável devastação no meu estômago vem a idéia maluca: virar marinheiro. Me enfiar num cargueiro em Marselha,correr mundo. Pegar gonorréias internacionais. Amar nórdicas voluptuosas e gregas clássicas. E vice-versa. Experimentar a solidão das longas travessias. Pensar em tudo. Morrer de tédio, de medo, de tesão. Provar o amor dos portos, viver a liberdade no mar. Like a floating stone. Jack London."