Cinema - "Slovenian Girl"- Damjan Kozole


Jovem do interior recorre à prostituição na cidade grande para suprir suas necessidades econômicas: não parece lá muito um enredo original para as telas de cinema. Na primeira cena de "Slovenian Girl", a protagonista se envolve acidentalmente na morte de um figurão da política local - o homem enfarta na cama antes do coito ser consumado. O fato que  poderia conduzir o roteiro para uma trama melhor construída, acaba conduzindo ao espectador à saga de Alexandra na luta de ser manter  incógnita como garota de programa. Filme europeu. Narrativa lenta - com o vai-e-vem nas estações de trem entre a cidade da moça e Liublianna, capital da Eslovenia - repleta de planos-detalhe no rosto da protagonista com a cabeça apoiada no vidro da janela, mergulhada nos conflitos interno/externo. A única paisagem que ela contempla é a da própria incerteza de seu caminho. Ela tem um pai compreensivo, uma mãe problemática, um ex-amante obcecado pelo término da relação e alguns homens que conhecem seu segredo e vão chantageá-la até o final. Destaque para Nina Ivanisin - atriz principal - e pela trilha sonora de temática "looser-ballad"de rock americano ( com uma ótima versão de "Bobby Brown goes down"de Frank Zappa). Um prato cheio para os amantes do cinema europeu.

A volta dos vinis - Charles Mingus - " Ah um"


Charles Mingus foi um dos grandes gênios do jazz do século XX; conhecido pelo seu temperamento intempestivo - que lhe levou a alcunha de "The Angry Man of Jazz"- o baixista americano sabia e muito ser generoso.Enquanto lecionava na Los Angeles City College, nos idos de 1943, Mingus criou a ideia de "workshop" no jazz, um espaço livre onde alunos e mestres dialogavam musicalmente longe de posições hierárquicas. Essa ideia persiste até hoje em todas as escolas de música no mundo. Ao mudar-se para Nova Iorque em 1953, o músico expandiu esse conceito e organizou uma série de workshops no Putnam Central Club do Brooklyn, com shows realizados por nomes como Maz Roach, Telhonius Monk, Art Blakey e com ativa participação do público, na maioria formada por músicos, que opinavam "ao vivo"sobre os arranjos e executavam os temas com os instrumentos que traziam de casa. A ideia foi mais longe e se transformou em um álbum gravado nos dias 5 e 12 de maio de 1959 nos estúdios da Columbia em Nova Iorque. Acompanhado por músicos que haviam trabalhado com Mingus em discos anteriores - como Charlie Richmond na bateria, Horace Parlan no piano - a obra é pura fluidez sonora composta "mentalmente"por Mingus - havia pouquíssima partitura escrita antes das gravações. Destaque para "Self-portrait in three colors", feita especialmente para o primeiro filme de John Cassavetes. Um disco imperdível.

Cinema'- "Apenas uma noite" - Massy Tadjedin



Para ser simplório - sem ser leviano - resumo a ideia básica do filme "Apenas uma noite" na máxima de Oscar Wilde: "Pode-se resisitir a tudo, menos a tentação". Ou não.
Michael e Joanna Red formam um casal jovem e bem sucedido de Manhatan. O imobiliário do apartamento fala por eles: modernos, ricos e promissores. Em uma festa na empresa do marido, Joanna - interpretada por Keira Knightely - flagra olhares lascivos do mesmo para uma nova funcionária, personagem de Eva Mendes, quase irresistível. Os dois farão uma viagem de negócios no dia seguinte. Joanna lê essa curta viagem como uma iminente traição. O casal volta da festa, discute, ele jura que nunca prestou atenção na colega. Quis o destino que durante a ausência do marido, Joanna esbarrase nas ruas de Nova Iorque com um ex-namorado parisiense, de passagem pela cidade. O magnetismo entre os dois é latente. O francês a convida para jantar, ela aceita. Pronto. As sortes estão lançadas.
Durante quase uma hora o espectador acompanha, quadro a quadro, os rumos dos acontecimentos dessa noite: na viagem, Eva Mendes usa todos seus artifícios para seduzir Michael: em Manhatan, Joanna é acintosamente assediada pelo ex-namorado francês. O público se identifica com os desdobramentos psicológicos e comportamentais dos personagens, afinal, todos nós já passamos por isso. Não dá para contar o final. Assista e tire suas próprias conclusões. O filme é uma co-produção França/EUA, dirigido pelo estreante Massy Tadjedin.

Literatura - Leonard Cohen - "A brincadeira favorita"


Leonard Cohen escreveu dois romances ao longo de sua brilhante produção musical e poética nas últimas quatro décadas. Há quem considere Cohen “maior” do que Bob Dylan. Em 1959 – com apenas 24 anos – o compositor canadense partiu para Inglaterra e Grécia para escrever seu primeiro romance, “A brincadeira favorita”, publicado esse ano no Brasil pela editora Cosac Naify. Com o prefácio do escritor gaúcho Daniel Galera, a obra narra a infância e juventude de Lawrence Breavman – alter –ego do autor – judeu de um bairro nobre de Montreal.  Crítico mordaz de seus semelhantes e com propensões à carreira literária, Breavman  desfila  seu “veneno existencial” ao lado do fiel amigo Krantz – cúmplice de todas as horas e responsável pela cicatriz no rosto do amigo em uma brincadeira de infância; para o narrador “uma cicatriz é o que acontece quando a palavra se faz carne”. No início da juventude, Breavman se muda para Nova Iorque, onde uma vastíssima coleção de mulheres – em plena  ebulição comportamental da década de 60 – ocupará seu tempo e principalmente, sua obra. “A brincadeira favorita” atesta o gênio de Leonard Cohen, que o mundo  confirmaria alguns anos depois.
Trechos escolhidos : “Ele odiava os homens flutuando no sono dentro das grandes casas de pedra. Porque a vida deles era ordenada e seus quartos, arrumados. Porque acordavam toda manhã e iam para os empregos públicos.Porque não dinamitariam as fábricas nem fariam orgias diante de uma fogueira.”
                                “Shell sentia um afeto genuíno por ele. Precisava recorrer a essa expressão ao avaliar seus sentimentos. Isso a deixava mal, pois não queria dedicar a vida a um afeto genuíno. Não era o tipo de tranqüilidade que queria. A elegância de um casal dançando era notável apenas porque a graça advinha de um doce conflito carnal. Do contrário seria um teatro de bonecos, algo hediondo. Começou a conceber a paz como conseqüência da desgraça".

Cinema - 'Eu receberia as piores notícias dos teus lindos lábios"- Beto Brant

  
Sexto longa-metragem do diretor Beto Brant, "Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios" narra o trágico triângulo amoroso vivido por um fotógrafo, uma ex-viciada e seu marido - pastor comprometido com as causas indígenas no interior do Brasil. Camila Pitanga interpreta a adúltera, dividida entre o amor carnal sentido por Cauby e os sentimentos nobres por Ernani, homem mais velho que lhe livrou da prostituição. Baseado no livro de Marçal Aquino, o filme mostra Camila Pitanga em sua melhor atuação no cinema, uma personagem que ama demais, deseja demais e se drogou demais. Beto Brant tem o mérito de explorar todo o potencial erótico da atriz sem cair na vulgaridade, cada tórrida cena filmada é necessária
para incluir o espectador no cárcere afetivo vivido pelos dois amantes.
Outro ponto alto da narrativa é a visão quase documental sobre o cotidiano dos moradores da região, mergulhada em pobreza e explorada economicamente pelos madereiros; o filme sugere que em ambos núcleos, o social e amoroso, algo vai explodir. Renato Ciasca divide com Beto Brant o roteiro e a direção do filme.

A volta dos vinis - PJ Harvey & John Parish - "A woman a man walked by



PJ harvey e John Parish retomam uma antiga parceria profícua: o músico britânico participou de seis albúns da cantora, além de atuar como músico de sua banda entre 1994 e 1999. "A woman a man walked by" traz a mesma Polly de sempre, perfeita ao navegar em um tema contínuo em sua carreira: a perda. Seja da mãe pelo filho morto em "The chair" ou de uma catástrofe emocional anunciada em "leaving California", onde canta: "California killed me/ I think it's time to leave/ I told no one I'd stay". Em "16, 15,14", duas crianças brincam de esconde-esconde, o sol se põe e nenhuma delas tem motivos para sorrir.
"A woman a man walked by" traz uma sonoridade sombria, avessa ao sol californiano e de acordo com as nuvens peremptórias das paisagens inglesas - as origens da pálida PJ Harvey. Músicas com acordes menores, riffs melancólicos repetidos a exaustão. John Parish é responsável pelas composições, Polly escreveu todas as letras. No formato vinil, com a capa de papel e uma enigmática e instigante foto da dupla estampada, segue um encarte com as letras.

Cinema - "Clean" de Olivier Assayas


Um drama contemporâneo respaldado com os prêmios de melhor fotografia e atriz principal no Festival de Cannes de 2004, "Clean" narra a história de Emily- uma produtora musical que perde o marido em uma overdose acidental de heroína. Ela forneceu a droga para o próprio esposo - um cantor decadente sem perspectivas no mercado. Emily passa seis meses na prisão mas para retomar a posse do filho, precisa também largar o vício e procurar um emprego. "Clean" é um filme que trata com extrema nitidez o árduo processo do ser humano cuja única solução existencial é de se "reinventar". Abandonar sonhos e velhas certezas para conseguir seu quinhão no mundo prático, na realidade objetiva das coisas. Com uma atuação soberba de Maggie Chung, o roteiro é certeiro na pontuação psicológica da personagem; ela exita, sofre, não sabe se deve amar por vocação ou desejo. Décimo-primeiro longa de Olivier Assayas - mesmo diretor de "Cold water", o filme traz uma belíssima atuação de Nick Nolte, em seu primeiro grande papel numa produção francesa.

"A volta dos vinis"(12) - Beirut - "Lon Gisland"



Lançado em 2007 - logo após o début da banda com "Gulag Orkestar" - "Lon Gisland" é um EP com quatro únicas canções; quatro "pérolas" da orquestra de Zach Condon, líder e mentor do Beirut. Se Emir Kusturika filmasse no sul dos Estados Unidos, certamente essa seria a trilha sonora escolhida; "Elephant gun" abre o vinil com seu lamento melódico, apoiado pelas cornetas do cancioneiro popular mexicano; as outras faixas - "My family's Role in the world revolution", "Scenic world" e "Carousels" sintetizam o feliz encontro entre o "folk balcânico" e outras diversas referências musicais contemporâneas da banda. O uso de instrumentos como o ukulele - originário da Ilha da Madeira com apenas quatro cordas, lá, mi, dó e sol - aliadas aos de sopro como a tuba e a tuba menor, conferem às canções uma camada sonora única, densa e emotiva. Vale dizer que o EP só tem um lado, o outro fica à deriva em nossa imaginação, bem afeita à proposta deles. Imperdível.

A volta dos vinis - "Batman" - trilha sonora original da série de TV


Seguindo com a obsessão por vinis de trilhas sonoras originais de cinema, esbarrei com a trilha de "Batman" - a série - gravado em 1966; qual não foi a surpresa - e "santa ignorância, Batman!" - de saber que a música foi composta e orquestrada por Nelson Riddle. Já admirava o arranjador e compositor americano pelas premiadíssimas trilhas de "O grande Gatsby", "Route 66" e "Lolita" de Kubrick. Ella Fitzgerald confiava albuns inteiros aos seus arranjos e orquestrações, "Strangers in the night"- na versão imortalizada por Frank Sinatra - é assinada por ele. Ao lado de Ennio Morricone e Henry Mancini, Nelson Riddle forma a tríade de meus compositores preferidos para trilhas - sorry, injustiça com Burt Bacharach! A tétrade!
"Batman" é um tema conhecido mundialmente; seu riffe de guitarras, meio surf music, meio rockabilly, influenciou uma série de outras trilhas - segundo as más línguas, até a de "Tubarão". A linha de baixo marcadíssima, aliada as intervenções melódicas dos metais e do coro feminino fazem do tema um clássico. As faixas do disco são basicamente as variações de "Batman theme" sob diversas leituras - jazzísticas, rock and roll, latin e das "big bands"; é inegável a sensação de ser um disco gravado nos anos 1960, dada a relevância atribuída às guitarras e ao estilo tribal de bateria. Destaque para as ótimas "Gotham city" e "Batman blues", duas baladas que faziam o homem-morcego enxergar a mulher-gato de forma "diferente" - para o desespero de Robin. Nelson Riddle morreu em 1985, aos 64 anos; dez anos antes recebeu sua estrela na calçada da fama de hollywood. Aos que se depararem com esse vinil pelos sebos do Brasil, recomendo não deixar escapar!

Cinema : Série Paul Morrissey - "Flesh"


Por um problema de logística – esse era o único filme que não estava a venda na FNAC Barcelona – escrevo agora o último comentário das cinco películas analisadas pela dobradinha Paul Morrisey-Andy Warhol. “Flesh” deveria ser a primeira porque de fato foi a estréia do diretor como responsável geral por tudo o que a Factory produziria no âmbito cinematográfico, mas o filme estava esgotado e agora já sei o motivo.
“Flesh” é um prato cheio para o público gay. Relutei em usar esse epíteto mas depois de 90 minutos de película é incorruptível essa sensação. O nu masculino é prioritário, as atrizes não tiram a calcinha mas é interessante constatá-lo porque no final dos anos 60, a nudez feminina era a nudez estilizada. Filmado em 1967, o filme contém os mesmos elementos e personagens que seguiriam em “Trash” e em “Heat”. Vagabundos viciados pelas ruas de Nova Iorque em busca de sexo e heroína; travestis e anônimos em busca da fugaz felicidade que o universo mediático pode oferecer. Já estamos falando de mulheres que aderem ao uso do silicone , do culto ao corpo, da idealização da beleza masculina e da “imprensa rosa” que invade os meios de comunicação de massa; tudo é superficial, frívolo, de plástico. Feito há 40 anos atrás, “Flesh” parece que foi lançado ontem. Morrisey segue com um estilo quase documental, ultra-realista e com diálogos semi improvisados. Destaque para cena em que John Dallesandro recebe sexo oral de uma stripper em uma sala com duas travestis sentadas lendo revistas; elas se incomodam e perguntam se não sentem vergonha em fazê-lo na frente deles; ele respode: “Não. Porque os anjos também fazem”. A stripper quer botar silicone “porque todo mundo bota” e a dupla travestida replica: “Olhe para as estátuas gregas. Nenhuma delas tinha o peito de vaca e eram exuberantes.” “Se uma tivesse colocado,se destacaria”, resume a go-go girl. E para terminar, afirma que prefere trabalhar o corpo do que o cérebro, porque quanto mais se aprende, mais se deprime.
Com “Flesh” encerro o ciclo sobre Paul Morrissey /Andy Warhol.
Hasta la vista.